domingo, 21 de novembro de 2021

Uma Grande Mulher - Heloneida Studart.

Heloneida Studart é uma escritora cearense , ensaísta, teatróloga, jornalista, defensora dos direitos das mulheres e política brasileira. Foi seis vezes deputada estadual do Rio de Janeiro pelo Partido dos Trabalhadores. 

Foi uma voz ativa pela licença-maternidade de 120 dias e criou lei que garante às mães pobres testes gratuitos de DNA para responsabilizar pais. 

Com apenas nove anos, ainda estudante do colégio de freiras Imaculada Conceição de Fortaleza, escreveu sua primeira história, a que deu o título de "A menina que fugiu do frio". Aos 16 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro e tornou-se colunista do jornal "O Nordeste" . Publicou, em 1953, seu primeiro romance, "A primeira pedra", e, quatro anos depois, seria premiada pela Academia Brasileira de Letras pelo segundo título publicado, "Dize-me teu nome."


Esta é uma pequena parte da história desta grande mulher, desta grande brasileira. Faleceu em dezembro de 2007. Voltou para o Cosmos, mas nos deixa uma vasta produção intelectual sempre contemporânea e necessária.

Nestes últimos dias de novembro de 2021, um de seus textos publicado no Jornal  do Brasil em fevereiro de 2001, voltou a causar repercussão na internet, intitulado " o poder desarmado" nele a autora relata fatos e situações de posse, dominação e humilhação aos quais meninas e mulheres são submetidas ao longo da vida em um mundo, em um Brasil machista. O texto esta sendo atribuído a grande compositora e cantora Rita Lee, mas é na verdade de Heloneida Studart. 

Eis o texto.
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O poder desarmado

Eu tinha 13 anos, em Fortaleza, quando ouvi gritos de pavor. Vinha da vizinhança, da casa de Bete, mocinha linda, que usava tranças. Levei apenas uma hora para saber o motivo. Bete fora acusada de não ser mais virgem e os irmãos a subjugavam em cima de sua estreita cama de solteira, para que o médico da família lhe enfiasse a mão enluvada entre as pernas e decretasse se tinha ou não o selo da honra. Como o lacre continuava lá, os pais respiraram, mas a Bete nunca mais foi à janela, nunca mais dançou nos bailes e acabou fugindo para o Piauí, ninguém sabe como, nem com quem.

Eu tinha apenas 14 anos, quando Maria Lúcia tentou escapar, saltando o muro alto do quintal da sua casa para se encontrar com o namorado. Agarrada pelos cabelos e dominada, não conseguiu passar no exame ginecológico. O laudo médico registrou vestígios himenais dilacerados, e os pais internaram a pecadora no reformatório Bom Pastor, para se esquecer do mundo. Realmente esqueceu, morrendo tuberculosa.

Estes episódios marcaram para sempre e a minha consciência e me fizeram perguntar que poder é esse que a família e os homens têm sobre o corpo das mulheres. Ontem, para mutilar, amordaçar, silenciar. Hoje, para manipular, moldar, escravizar aos estereótipos. Todos vimos, na televisão, modelos torturados por seguidas cirurgias plásticas. Transformaram seus seios em alegorias para entrar na moda da peitaria robusta das norte americanas.
 
Entupiram as nádegas de silicone para se tornarem rebolativas e sensuais, garantindo bom sucesso nas passarelas do samba. Substituíram os narizes, desviaram costas, mudaram o traçado do dorso para se adaptarem à moda do momento e ficarem irresistíveis diante dos homens. E, com isso, Barbies de fancaria, provocaram em muitas outras mulheres; as baixinhas, as gordas, as de óculos; um sentimento de perda de auto-estima. Isso exatamente no momento em que a maioria de estudantes universitários (56%) é composta de moças. Em que mulheres se afirmam na magistratura, na pesquisa científica, na política, no jornalismo. E, no momento em que as pioneiras do feminismo passam a defender a teoria de que é preciso feminilizar o mundo e torna-lo mais distante da barbárie mercantilista e mais próximo do humanismo.

Por mim, acho que só as mulheres podem desarmar a sociedade. Até porque elas são desarmadas pela própria natureza. Nascem sem pênis, sem o poder fálico da penetração e do estupro, tão bem representado por pistolas, revólveres, flechas, espadas e punhais. Ninguém diz, de uma mulher, que ela é de espadas. Ninguém lhe dá, na primeira infância, um fuzil de plástico, como fazem os meninos, para fortalecer sua virilidade e violência. As mulheres detestam o sangue, até mesmo porque têm que derrama-lo na menstruação ou no parto. Odeiam as guerras, os exércitos regulares ou as gangues urbanas, porque lhes tiram os filhos de sua convivência e os colocam na marginalidade, na insegurança e na violência. É preciso voltar os olhos para a população feminina como a grande articuladora da paz.

E para começar, queremos pregar o respeito ao corpo da mulher. Respeito às suas pernas que têm varizes porque carregam latas d’água e trouxas de roupa. Respeito aos seus seios que perderam a firmeza porque amamentaram seus filhos ao longo dos anos. Respeito ao seu dorso que engrossou, porque elas carregam o país nas costas. São as mulheres que irão impor um adeus às armas, quando forem ouvidas e valorizadas e puderem fazer prevalecer à ternura de suas mentes e a doçura de seus corações.

Viva Rita Lee que canta:

“nem toda feiticeira é corcunda,
nem toda brasileira é bunda
e meu peito não é de silicone…
sou mais macho que muito homem”.



 

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